segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

CARTA AO IPHAN: CONSIDERAÇÕES SOBRE INTERVIR NO VER-O-PESO, EM BELÉM DO PARÁ.


Reproduzimos abaixo a carta do arquiteto e urbanista Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro e um dos autores da proposta vencedora do Concurso Público Nacional realizado em 1999 que escolheu o projeto da última intervenção urbanística na feira.
Parece que tem mais gente preocupada no Brasil com a proposta apresentada pela Prefeitura do que entre nossa intelligentzia  paraora. 

Prezada Sra Presidente do IPHAN

SRA JUREMA MACHADO


Senhora, ouso abordá-la sobre o tema que se avizinha de possível nova intervenção na Feira do Ver-O-Peso em Belém do Pará.
Para contribuir ao debate, disponibilizo aqui, no link acima, o acesso as pranchas originais do concurso nacional de arquitetura, realizado em duas fases, com debates públicos, promovido pelo IAB, Instituto de Arquitetos do Brasil, em 1999, e regido por orçamento participativo, onde os feirantes eram clientes ativos na busca por um design coerente com suas tradições e práticas mas também atender a condições atuais e reverter o quadro de
afastamento da população local, especialmente de classe média, da feira.
Foram muitos anos de trabalho, sou um dos autores da proposta vencedora, conjuntamente com Flavio Ferreira, Pedro Rivera, Rafael Balbi e Rodrigo Azevedo, entre outros profissionais em grande equipe multidisciplinar, em projeto que foi uma das experiências urbanas mais avançadas na virada do milênio, num contexto amazônico, gerida por uma administração municipal de caráter popular e amparada em metodologias participativas, tendo sido a orientação por concurso nacional, uma prerrogativa expressa da comunidade local da feira.
O texto do concurso é muito bonito e defende uma solução sofisticada amparada na complexa e bem articulada relação entre elementos populares e eruditos, vernaculares e tecnológicos, onde coexistem edifícios em ferro vindos de outra parte do mundo, da Escócia, com produtos e artefatos de design vindos do outro lado do rio, das “ilhas”.
A proposta traz portanto oferta de solução modular, capaz de lidar com a natureza atuante e presente – as chuvas frequentes e a umidade intensa – e a intensidade de fluxos e trabalhadores – inúmeros produtos, peixes, açaí, maniva, farinhas, camarão seco, carnes, etc – em articulação com edifícios singulares, o Mercado de Peixe, o de Carne, e o Solar da Beira, tendo como plataforma urbana a proximidade imediata com a cidade histórica, o Centro, a Praça do Relógio, o forte, a Sé.
Tal modulação firma a tenso-estrutura, que coleta água, libera ar, deixa passar luz, e comporta-se como véu mole, em contraste com elementos duros, e desenvolve um teto virtual, nebuloso, ondulado, que abriga e acolhe a intensa vida da feira. Esta tecnologia permite manutenção simples, e a simples substituição do material, ocorrendo a cerca de cada vinte anos, permite a longevidade e sustentabilidade da solução construtiva, assim como são pretensamente eternos os barcos mas substituem-se as velas.
Ver-O-Peso é uma magnífica conjugação da inteligência portuguesa e brasileira, fundando bases profundas para nossa modernidade.
“Quem no Pará parou, tomou açaí, ficou.” Dizem os locais tamanha é a força da terra, seu genius locci, seu terroir. Sou hoje, graças a Deus (como lá se diz também), casado com uma filha de paraenses e o açaí “das ilhas”, a maniçoba, ainda frequentam minha vida.
Rogo leitura ao material que disponibilizo aqui.
Se irão intervir no Ver-O-Peso, que o façam novamente por concurso aberto, nacional, tal qual um Prometeu feliz, a reinventar-se continuamente mas sem dor, somente o prazer do vislumbre da água amarela da baía de Guajabara de onde sai o sol e de onde veio a Virgem de Nazareth, e de onde brota o Círio continuamente e vigorosamente.
Precisar demolir e reconstruir talvez não seja necessário mas esta é uma manifestação que não me convém, tão pouco defender exclusivamente como minha uma solução que foi construída democraticamente. Defendo aqui o caminho, o método, o modo. A inteligência de saber fazer. Saber intervir.
Uma corda de esperança pela qualidade na intervenção no ambiente construído e imaterial do Ver-O-Peso, bem que a humanidade precisa conhecer para reconfigurar suas lógicas de vida econômica, cultural e social com a natureza, especialmente diante das mudanças climáticas que ameaça nossa espécie no planeta.
As lições de Belém, e do Ver-O-Peso, são singelas mas tem raízes profundas nas relações que firmamos no passado e que poderemos firmar no futuro com a natureza.
E reside aí, nesse lugar aparentemente caótico, intenso, uma nova ordem harmônica para o Antropoceno.
Com meu mais profundo apreço pela sua condução sempre exemplar e serena, que a mim influencia tanto, também atualmente na condição de gestor de patrimônio cultural, despeço-me com muito respeito e admiração.
Atenciosamente
Washington Fajardo
arquiteto e urbanista

Veja aqui as Pranchas do Concurso Ver o Peso

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