domingo, 31 de maio de 2020

Para Bolsonaro, o patrimônio, o meio ambiente e a vida não valem mil-réis


Os dois estão parados, de perfil, lado a lado
Antes de começar, um parêntesis. Em horas de reunião, o presidente e seus ministros não tiveram a menor preocupação de avaliar seriamente a mais grave crise sanitária, social e econômica que o país já viveu e debater medidas emergenciais para enfrentá-la.
É inacreditável que esse tema não fosse o principal, senão o único, a ser tratado em uma reunião de todo o ministério, em um momento em que a pandemia já apontava para dezenas de milhares de mortos, o colapso do sistema de saúde, a falência de milhares de empresas e a miséria de milhões de brasileiros.
Em que mundo vive esse governo? De todos os crimes que se evidenciaram naquela reunião, talvez o mais grave tenha sido a omissão. Para eles, parece que a vida dos brasileiros não vale nada. Mas, se nem isso importa, porque o meio ambiente e o patrimônio cultural valeriam alguma coisa?
A pornográfica declaração de Ricardo Salles (“vamos aproveitar a crise do coronavirus para passar uma boiada”) apenas explicitou publicamente o que já se sabia, como apontei na minha última coluna, “Bolsonaro aproveita a pandemia para destruir o meio ambiente”. Hoje, acrescento: também para destruir o patrimônio cultural.
Na surdina, sem debate público, aproveitando um momento em que as atenções estão voltadas para a pandemia, o governo quer retroceder décadas e facilitar a ação dos agentes econômicos selvagens que querem explorar o território nacional sem garantir a proteção ambiental e patrimonial.
Para desmontar a regulamentação e a fiscalização, a estratégia explicitada por Bolsonaro e Salles está clara: interferir e desmontar os ministérios e flexibilizar a regulamentação.
Muito tem se falado na interferência do presidente na Polícia Federal, um órgão do Estado e não do governo e que precisa ter sua autonomia garantida. Mas o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) também são órgãos responsáveis por políticas de Estado, devendo zelar pela proteção de bens de valor incomensurável, não apenas para o país como para toda a humanidade.
A condução dessas instituições deve ser eminentemente técnica e sua ação deve estar regulada por dispositivos amplamente debatidos e conhecidos pela sociedade. Assim como na PF, utilizar esses órgãos para obter benefícios pessoais e para amigos é crime.
O governo vem sistematicamente desestruturando os setores administrativos e técnicos, removendo servidores de carreira, nomeando pessoas sem qualificação para os cargos de chefia e pressionando profissionais para aprovar projetos que contrariam as normas para favorecer interesses individuais.
No Iphan, criado em 1937 e que durante décadas manteve sua autonomia, ficou famosa a pressão exercida pelo ex-ministro de Temer, Geddel Vieira Lima (aquele dos R$ 54 milhões guardados em malas) para aprovar um arranha-céus em Salvador. No episódio, entretanto, acabou por prevalecer os argumentos técnicos.
Aquilo foi apenas o aperitivo para o que acontece agora. Katia Bogea, ex-presidente do Iphan (2016-2019), foi demitida após o amigo do presidente, Luciano Hang, ter reclamado da paralisação de uma obra da Havan, determinada devido a achados arqueológicos, como estabelece a legislação, episódio citado na fala do presidente agora divulgada. Para seu lugar foi escolhida uma funcionária sem experiência na área patrimonial.
A representação da sociedade civil no Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan, formada por 16 eminentes especialistas, expressou inquietação com “a substituição dos superintendentes regionais do órgão, sem o necessário respeito a critérios de qualificação que o exercício do cargo exige”. O conselho denunciou o “critério de escolha dos novos ocupantes como, por exemplo, por meio de ‘sorteio’ de parlamentares que, assim, teriam a prerrogativa de indicar pessoas de sua confiança”.
Em setembro passado, o MPF de Goiás pediu que o governo tornasse sem efeito a nomeação de Allysson Cabral para o cargo de superintendente regional. Os procuradores alegaram que “ele não tinha perfil e formação para o cargo, não atendendo ao interesse público e à legislação e configurando desvio de finalidade”. Neste mês, após construtores reclamarem com Flávio Bolsonaro da superintendência da Bahia, uma amigo da família foi indicado para o cargo.
Mas apenas a mudança dos cargos de chefia é insuficiente para os propósitos devastadores do governo. Isso porque movimentos, órgãos de controle, MP e Judiciário têm se demonstrado sensíveis aos abusos e conseguido, por vezes, reverter decisões equivocadas, ilegais ou que contrariam dispositivos infralegais.
Por isso, Salles quer aproveitar a oportunidade para fazer, sem o acompanhamento da sociedade e da imprensa, mudanças em portarias ou instruções normativas dos ministérios, citando nominalmente o Iphan e o MMA.
As declarações de Salles não surpreenderam quem vem acompanhando sua gestão. Para a WWF Brasil, “ele trabalha, desde o início de seu mandato, para fragilizar o arcabouço legal e as instituições criadas para defender nosso patrimônio ambiental. É "notória a paralisia administrativa do MMA e dos órgãos a ele associados". Já o Greenpeace afirma que “o governo Bolsonaro deixa claro seu projeto de desmantelamento das condições de proteção ambiental do país".
O vídeo da reunião ministerial apenas reforçou o alerta que já existia contra o desmonte da legislação e fiscalização ambiental e patrimonial. Para o Greenpeace “não há espaço para ele ‘passar sua boiada’. A sociedade segue atenta, a Justiça Federal, julgando seus atos, e os satélites que medem o aumento do desmatamento, atestando o resultado de sua política. Bolsonaro ganhou as eleições, mas não ganhou um cheque em branco para acabar com a floresta e os povos indígenas, os ministros gostem ou não".
A repercussão internacional da flexibilização ambiental é enorme e está presente até no debate da eleição presidencial americana. O candidato democrata Joe Biden, que enfrentará Trump, afirmou na semana passada que “nós deveríamos ter um presidente que estivesse falando agora com o presidente do Brasil, dizendo: ‘Olhe, pare de queimar a Amazônia’, que é maior sumidouro de carbono no mundo”.
Como mostrou Mara Gama nesta Folha, o desmatamento crescente no Brasil faz com que o país, mesmo com a paralisação provocada pela pandemia, continue elevando suas emissões de CO2, ao contrário do que ocorre nos demais países do mundo.
Para beneficiar madeireiros e garimpeiros ilegais, especuladores imobiliários e amigos que não querem proteger o ambiente e o patrimônio, Bolsonaro, Salles e seus comparsas comprometem o planeta e a já difícil situação do país, cada vez mais sujeito a sanções econômicas.


Nabil Bonduki
Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo. colunista da Folha de São Paulo

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